POEMAS DE CARNE E OSSO

 POEMAS DE CARNE E OSSO

(Posfácio ao livro de mesmo título, da escritora e professora universitária Ana Rosária Soares da Silva, de Caxias – MA)


*



“Honrai as mulheres! Elas traçam e tecem Rosas celestes na vida terrestre, / Traçam os laços felizes do amor.”.


Mesmo tendo sido Friedrich Schiller filósofo, historiador, médico e um dos grandes nomes da Literatura alemã, pedimos licença para acrescentar, à parte desses versos, muitas razões pelas quais as mulheres devem merecer todas as honras. 


Talvez no século 18, em que a poesia schilleriana se deu, as palavras se justificassem; talvez, no recato da época, as recatadas damas fossem levadas a quase tão só tecerem, traçarem. 


Conhecido e reconhecido sobretudo por sua “Ode (ou Hino) à Alegria”, com que dá voz e coral à magistral 9ª Sinfonia de Beethoven, o dramaturgo e também poeta Schiller quem sabe poderia escrever:


“Honrai as mulheres! Elas traçam, tecem, ensinam, dirigem (veículos, empresas, países, homens)...”


As mulheres fazem isso e muito mais, e muito bem, e, sem espírito de competição, quase sempre fazem melhor que nós, los hombres. 


E escrevem. E fazem isto  -- escrever, inclusive poesia --  há muito tempo, como está bem documentado pela Arqueologia e pela História, a exemplo da alta sacerdotisa Enheduana, filha do rei Sargão da Acádia (Mesopotâmia, atual Iraque), há mais de 4.300 anos. Enheduana é tida como a primeira escritora do mundo.


Honrai as mulheres! Elas escrevem, e se escrever é botar pra fora, tirar de dentro o que dentro foi gerado, gestado, gerido  --  então, isso as mulheres tiram... de letra. A Literatura é amiga delas, a Poesia é amiga delas  --  amigas, chegadas, cúmplices... São todas fêmeas, femininas. Sabem o que e como conversar entre si.


A autora destes “Poemas de Carne e Osso” apresenta aqui seus versos e apresenta-se por meio deles com uma natureza, uma naturalidade, uma espontaneidade que, para quem dela conhece ao menos o mínimo, não deveria surpreender, mas encantar(-se). Porque Ana Rosária não recorreu à professora-mestre, acostumada a falar de formas, fôrmas e fórmulas da Arte, da Escrita, da Poesia para audientes e auditórios em salas e salões de faculdades e escolas.


A Ana Rosária que se vê, que se lê aqui é a mulher “au naturel”: que foi/é filha e declara amor aos pais; que se enriqueceu de brincadeiras e presepadas na infância; que canta a cidade; que se encanta e se desencanta com o amor; que mostra autonomia, senhora de suas próprias vontades e regras. Ela adverte logo: “Não faço poemas para a realeza / [...] / Meu eu não tem dono nem autor / [...]”. E recomenda: “[...] / Não espere o sorriso alheio / Dê sua própria gargalhada / Pule do tamborete, mas antes / Retire a corda do pescoço / [...]”. Vai encarar?


Os poemas rosarianos também trazem a poeta patroa e não serva da Poesia. Sem rebuscamento, sem régua ou fita métrica, Ana Rosária se mede, se mexe e se mete com mesma espontaneidade no exigente universo metalinguístico, quando, inda que em terceira pessoa, o poema conversa consigo mesmo, com o próprio umbigo verbal ou com o espelho de celulose à sua frente. Desde as páginas iniciais, ali presentes o Amor e o Poema, e o amor ao poema. Em “Reencontro”: “Quase morto / O poema chega na madrugada / Ofegante, pálido e triste / Diz-se tão sozinho / Agachado entre as cortinas da janela / Confunde-se entre as flores amarelas do bordado / E num piscado, me paquera”.


A urdidura metapoética, como fieira, que nem cambo, entrelaça, entremeia, perpassa e trespassa este livro  -- sangra no que é carne e bate e tine e trinca naquilo que é osso.


Infância... Família... Caxias... Amor... Poesia... De uma escritora que é mulher múltipla e vária (“[...] menina tímida, inocente / [...] mulher atrevida, independente / [...] moça indefesa, inconsequente / [...]”) se pode esperar alguma variedade temática em seus escritos. Polifonia, polissemia e, também, polimorfismo: Ana Rosária inclui alguns textos em prosa, onde o que se lê não deixa de ter poesia, de ser poético. Os textos precisavam ser cometidos dessa forma, nesse gênero, porque esse tipo de prosa surge quando a poesia é maior do que o verso. Embora necessariamente não exija metrificação, o poema tem uma medida, uma barreira de contenção; tem suas confinanças. Já na prosa quem escreve esparrama-se, espalha pelo chão de celulose suas batatinhas de letras. A memória, a sensibilidade, a técnica e o talento são o limite. Ana Rosária é poeta  --  e boa de prosa... Ela mesma sente essa (perdoe-se o trocadilho) prosaica necessidade: “Um dia desses pensando comigo / Me veio à mente um dedo de prosa / Uma vontade medonha de alongar a conversa / Numa prosa sem pressa, de um papo legal.” (“Um dedo de Prosa”)


As descrições que ela faz na crônica “A velha casa” mudam o leitor de lugar, transportando-o, pelos poderes da imaginação, ao ambiente que a infância rosariana viu e viveu e que a adulta Ana Rosária recria e convida para, por um instante, nele  -- e com ela, menina --  conviver: “[...] Ainda vejo nas lembranças a varanda grande cimentada, a sala da velha casa de cores fortes, desbotadas, a máquina ‘Singer’ de pedal e correia de couro de animal que minha mãe refazia a cada vez que quebrava. [...]”. “Naquela casa havia sempre penduradas na parede a sela do burro, e às seis horinhas, todos os dias, antes da chegada das quebradeiras de coco, fazíamos uma busca alucinante pelas lamparinas para enchê-las de querosene antes que a noite caísse.”


Isso é privilégio de quem teve infância assim, de interior, de lamparinas de morrão, de arroz pilado em pilão, de rasga-mortalha no alto e na escuridão, com seu canto agourento, de tensão  --  mas aqui ninguém morre, não...


Não importa a embalagem formal, genérico-genética, se poesia ou prosa, se temática amorosa ou crítica, de raiz, autorreferenciada, metalinguística, a escrita de Ana Rosária é natural, visceral e coisa e tal. Não há maquiagem empoamento, emplumação, emplastramento.


Não. A poesia, a escrita muito própria de Ana Rosária se desvela e se revela sem encenações, sem artifícios e, pelo visto, sem artesania  --  parece que vieram do jeito que se veem/leem.


Ei-los, os “Poemas de Carne e Osso”, até pelo título tão íntimos, tão internos, tão intestinos. Revela-nos até silêncios: “A poesia não está somente na palavra / Mas também no silêncio / [...]”.


Então, hora de silenciar, não sem antes, educadamente, se despedir, com as palavras do curto poema e da infinita poesia dessa bela poeta Ana Rosária:


“Este não será meu último poema

Mas a página derradeira desta escrita

Fecho o livro agora

E vou-me embora.

Por hoje encerro, aqui,

Fecho a porta desta obra

E vou dormir”.


Bons sonhos, leitor. 


Você, com certeza, está em boa companhia.


EDMILSON SANCHES

Administração - Comunicação - Desenvolvimento - História - Literatura

PALESTRAS, CURSOS, CONSULTORIAS: 

E-mail: edmilsonsanches@uol.com.br

Site: https://edmilson-sanches.webnode.com/

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